quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

     O Prazer da Leitura 
     Rubem Alves 
Alfabetizar é ensinar a ler. A palavra alfabetizar vem de “alfabeto“. “Alfabeto“ é o conjunto das letras de uma língua, colocadas numa certa ordem. É a mesma coisa que “abecedário“. A palavra “alfabeto“ é formada com as duas primeiras letras do alfabeto grego: “alfa“ e “beta“. E “abecedário“, com a junção das quatro primeiras letras do nosso alfabeto: “a“, “b“, “c“ e “d“. Assim sendo, pensei a possibilidade engraçada de que “abecedarizar“, palavra inexistente, pudesse ser sinônima de “alfabetizar“... 

“Alfabetizar“, palavra aparentemente inocente, contém uma teoria de como se aprende a ler. Aprende-se a ler aprendendo-se as letras do alfabeto. Primeiro as letras. Depois, juntando-se as letras, as sílabas. Depois, juntando-se as sílabas, aparecem as palavras...

E assim era. Lembro-me da criançada repetindo em coro, sob a regência da professora: “be a ba; be e be; be i bi; be o bo; be u bu“... Estou olhando para um cartão postal, miniatura de um dos cartazes que antigamente se usavam como tema de redação: uma menina cacheada, deitada de bruços sobre um divã, queixo apoiado na mão, tendo à sua frente um livro aberto onde se vê “fa“, “fe“, “fi“, “fo“, “fu“... (Centro de Referência do Professor, Centro de Memória, Praça da Liberdade, Belo Horizonte, MG.)

Se é assim que se ensina a ler, ensinando as letras, imagino que o ensino da música deveria se chamar “dorremizar“: aprender o dó, o ré, o mi... Juntam-se as notas e a música aparece! Posso imaginar, então, uma aula de iniciação musical em que os alunos ficassem repetindo as notas, sob a regência da professora, na esperança de que, da repetição das notas, a música aparecesse...

Todo mundo sabe que não é assim que se ensina música. A mãe pega o nenezinho e o embala, cantando uma canção de ninar. E o nenezinho entende a canção. O que o nenezinho ouve é a música, e não cada nota, separadamente! E a evidência da sua compreensão está no fato de que ele se tranquiliza e dorme – mesmo nada sabendo sobre notas! Eu aprendi a gostar de música clássica muito antes de saber as notas: minha mãe as tocava ao piano e elas ficaram gravadas na minha cabeça. Somente depois, já fascinado pela música, fui aprender as notas – porque queria tocar piano. A aprendizagem da música começa como percepção de uma totalidade – e nunca com o conhecimento das partes.

Isso é verdadeiro também sobre aprender a ler. Tudo começa quando a criança fica fascinada com as coisas maravilhosas que moram dentro do livro. Não são as letras, as sílabas e as palavras que fascinam. É a estória. A aprendizagem da leitura começa antes da aprendizagem das letras: quando alguém lê e a criança escuta com prazer. “Erotizada“ – sim, erotizada! – pelas delícias da leitura ouvida, a criança se volta para aqueles sinais misteriosos chamados letras. Deseja decifrá-los, compreendê-los – porque eles são a chave que abre o mundo das delícias que moram no livro! Deseja autonomia: ser capaz de chegar ao prazer do texto sem precisar da mediação da pessoa que o está lendo.

No primeiro momento as delícias do texto se encontram na fala do professor. Usando uma sugestão de Melanie Klein, o professor, no ato de ler para os seus alunos, é o “seio bom“, o mediador que liga o aluno ao prazer do texto. Confesso nunca ter tido prazer algum em aulas de gramática ou de análise sintática. Não foi nelas que aprendi as delícias da literatura. Mas me lembro com alegria das aulas de leitura. Na verdade, não eram aulas. Eram concertos. A professor lia, interpretava o texto, e nós ouvíamos extasiados. Ninguém falava. Antes de ler Monteiro Lobato, eu o ouvi. E o bom era que não havia provas sobre aquelas aulas. Era prazer puro. Existe uma incompatibilidade total entre a experiência prazerosa de leitura – experiência vagabunda! – e a experiência de ler a fim de responder questionários de interpretação e compreensão. Era sempre uma tristeza quando a professora fechava o livro...

Vejo, assim, a cena original: a mãe ou o pai, livro aberto, lendo para o filho... Essa experiência é o aperitivo que ficará para sempre guardado na memória afetiva da criança. Na ausência da mãe ou do pai a criança olhará para o livro com desejo e inveja. Desejo, porque ela quer experimentar as delícias que estão contidas nas palavras. E inveja, porque ela gostaria de ter o saber do pai e da mãe: eles são aqueles que têm a chave que abre as portas daquele mundo maravilhoso! Roland Barthes faz uso de uma linda metáfora poética para descrever o que ele desejava fazer, como professor: maternagem: continuar a fazer aquilo que a mãe faz. É isso mesmo: na escola, o professor deverá continuar o processo de leitura afetuosa. Ele lê: a criança ouve, extasiada! Seduzida, ela pedirá: “Por favor, me ensine! Eu quero poder entrar no livro por conta própria...“

Toda aprendizagem começa com um pedido. Se não houver o pedido, a aprendizagem não acontecerá. Há aquele velho ditado: “É fácil levar a égua até o meio do ribeirão. O difícil é convencer a égua a beber“. Traduzido pela Adélia Prado: “Não quero faca nem queijo. Quero é fome“. Metáfora para o professor: cozinheiro, Babette, que serve o aperitivo para que a criança tenha fome e deseje comer o texto...

Onde se encontra o prazer do texto? Onde se encontra o seu poder de seduzir? Tive a resposta para essa questão acidentalmente, sem que a tivesse procurado. Ele me disse que havia lido um lindo poema de Fernando Pessoa, e citou a primeira frase. Fiquei feliz porque eu também amava aquele poema. Aí ele começou a lê-lo. Estremeci. O poema – aquele poema que eu amava – estava horrível na sua leitura. As palavras que ele lia eram as palavras certas. Mas alguma coisa estava errada! A música estava errada! Todo texto tem dois elementos: as palavras, com o seu significado. E a música... Percebi, então, que todo texto literário se assemelha à música. Uma sonata de Mozart, por exemplo. A sua “letra“ está gravada no papel: as notas. Mas assim, escrita no papel, a sonata não existe como experiência estética. Está morta. É preciso que um intérprete dê vida às notas mortas. Martha Argerich, pianista suprema (sua interpretação do concerto n. 3 de Rachmaninoff me convenceu da superioridade das mulheres...) as toca: seus dedos deslizam leves, rápidos, vigorosos, vagarosos, suaves, nenhum deslize, nenhum tropeção: estamos possuídos pela beleza. A mesma partitura, as mesmas notas, nas mãos de um pianeiro: o toque é duro, sem leveza, tropeções, hesitações, esbarros, erros: é o horror, o desejo que o fim chegue logo.

Todo texto literário é uma partitura musical. As palavras são as notas. Se aquele que lê é um artista, se ele domina a técnica, se ele surfa sobre as palavras, se ele está possuído pelo texto – a beleza acontece. E o texto se apossa do corpo de quem ouve. Mas se aquele que lê não domina a técnica, se ele luta com as palavras, se ele não desliza sobre elas – a leitura não produz prazer: queremos que ela termine logo. Assim, quem ensina a ler, isto é, aquele que lê para que seus alunos tenham prazer no texto, tem de ser um artista. Só deveria ler aquele que está possuído pelo texto que lê. Por isso eu acho que deveria ser estabelecida em nossas escolas a prática de “concertos de leitura“. Se há concertos de música erudita, jazz e MPB – por que não concertos de leitura? Ouvindo, os alunos experimentarão os prazeres do ler. E acontecerá com a leitura o mesmo que acontece com a música: depois de ser picado pela sua beleza é impossível esquecer. Leitura é droga perigosa: vicia... Se os jovens não gostam de ler, a culpa não é deles. Foram forçados a aprender tantas coisas sobre os textos - gramática, usos da partícula “se“, dígrafos, encontros consonantais, análise sintática –que não houve tempo para serem iniciados na única coisa que importa: a beleza musical do texto literário: foi-lhes ensinada a anatomia morta do texto e não a sua erótica viva. Ler é fazer amor com as palavras. E essa transa literária se inicia antes que as crianças saibam os nomes das letras. Sem saber ler elas já são sensíveis à beleza. E a missão do professor? Mestre do kama-sutra da leitura...


APERITIVOS

1. “Analfabeta não é a pessoa que não sabe ler. É a pessoa que, sabendo ler, não gosta de ler.“ (Quem foi que disse isso? Acho que foi o Mário Quintana).

2. A menininha de 9 anos me explicou como as crianças na sua escola aprendiam a ler: “Aqui na Escola da Ponte não aprendemos letras e silabas. Só aprendemos totalidades...“

3. Os compositores colocam em suas partituras indicações para orientar o intérprete: lento, presto, adagio, alegretto, forte, piano, ralentando. Os escritores deveriam fazer o mesmo com seus textos. Há textos que devem ser lidos lentamente, expressivamente, tristemente. Outros que exigem leveza, rapidez, riso. O leitor experiente não precisa dessas indicações. Mas elas poderiam ajudar os principiantes.

4. “Mais valem dois marimbondos voando que um na mão“ (Almanak do Aluá).

5. Graciliano Ramos relata que, quando menino, na escola lhe ensinaram um ditado: “Fale pouco e bem e ter-te-ão por alguém“. Ele repetia o ditado mas ficava com uma dúvida: “Quem será esse ‘Tertião’?“

(Correio Popular, Caderno C, 19/07/2001.)

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

                    "A leitura de um bom livro é um diálogo incessante:
                                  o livro fala e a alma responde."
                                             André Maurois



Para iniciar o ano de 2012 muito bem com um ótimo conto!    

A Máquina da Alegria
Luiz Fernando Riesemberg

Foi quando eu tinha oito anos, em 1942, que dei a idéia para meu avô. Ele já era aposentado e dedicava o tempo a engenhar coisas no porão de sua velha casa. Vivíamos tempos difíceis por causa da guerra e quase todos os jovens da nossa cidade estavam nos campos de batalha, deixando as mães e as namoradas tristes e as sorveterias vazias.
— Vovô, por que você não inventa uma máquina da alegria? Uma em que a gente entrasse e se sentisse bem — disse eu naquele fim de tarde, quando já estávamos indo embora depois de um domingo em família. Eu sabia que ele era capaz, pois tinha trabalhado como projecionista de cinema e consertava brinquedos do parque de diversões.
Ele ficou pensativo por uns instantes e depois deu um daqueles seus sorrisos satisfeitos, dizendo:
— Os homens têm inventado muitas máquinas da tristeza, que fazem os outros chorar. É compreensível que se faça uma máquina da alegria. Eu vou pensar em algo, afinal, o que eu perderia com isso? — e me deu um forte abraço de despedida.
Dias depois ele me chamou para conversar sobre o assunto. Queria saber o que exatamente a máquina deveria fazer. Para mim, alegria eram as tortas de maçã que vovó fazia, era trocar figurinhas com meus amigos em frente ao cinema, antes do faroeste começar na matinê... esse tipo de coisa.
Como todo avô consegue ler os pensamentos dos netos, pelo menos até uma certa idade, ele sugeriu mais algumas alegrias que eu não lembrei no momento, como um bom banho de chuva numa tarde morna de verão, o cheiro de pão quentinho saindo do forno e a visão das primeiras formigas com asas que saem da terra anunciando o início da primavera. Juntos, fizemos uma lista bem grande com esses prazeres que só as crianças e os velhos percebem.
Passaram semanas e meses, e todos os dias meu avô entrava no porão para trabalhar no projeto, e só saía de lá para comer, dormir ou procurar nos arredores da cidade as peças a serem usadas na construção. A vovó e meus pais já estavam preocupados, achando que ele estava calejando as mãos e perdendo suas horas de descanso à toa na construção de um simples presente para mim. Já eu estava mais que ansioso e contava para todos que eu ia ganhar o melhor brinquedo do mundo. E enfim chegou o dia tão esperado.
Fiquei com os olhos fechados até que tivesse a permissão de abri-los, então me deparei com uma estranha geringonça amarela no porão do meu avô.
— O que está esperando, meu neto? Experimente!
Mais que depressa abri a porta da máquina e sentei no assento, enquanto recebia as pequenas instruções de como acioná-la. Foi uma viagem maravilhosa, indescritível. O invento era melhor do que eu esperava. Todas as cores, cheiros e gostos da felicidade estavam ali: um par novo de tênis; uma serenata na varanda; história de fantasmas em frente à fogueira; pescaria no rio; fruta no pé; casa na árvore; bolinha de gude; bolo de chocolate; show de mágica; canto de cigarra; ficar acordado até tarde; braço apertado de avó... Era um mundo de sensações que, hoje eu sei, me deixavam satisfeito, contente, jubiloso, deleitado e com um sorriso enorme no rosto.
Naqueles dias, todos os meus amigos quiseram experimentar a máquina, chegando a formar uma fila de meninos e meninas na casa de meus avós. Do lado de fora do brinquedo ouvíamos do felizardo da vez os seus “Oh!” e depois “Ah!” e ainda “Olhe pra isso!”, até que pequenas explosões e cheiro de queimado surgissem e fôssemos obrigados a desligar por um tempinho, para não sobreaquecer o motor.

Mas havia na cidade um homem muito mau, de quem todas as crianças tinham medo. Ele vivia com um saco nas costas, negociando sucata e objetos usados, mas tínhamos certeza de que era ele o terrível homem do saco, de quem nossas mães tanto falavam quando não queríamos tomar banho ou dormir cedo. Naquele saco imundo não teria só sucata, mas às vezes também devia haver algum menino desobediente.
Pois esse monstro ficou sabendo da máquina da alegria e resolveu roubá-la.
Entrou de mansinho no porão, na calada da noite e levou a invenção do meu avô em sua carroça. Tomei um susto quando cheguei no dia seguinte logo pela manhã, como sempre fazia, e não achei nada no lugar onde ela costumava ficar. Por dias a fio eu chorei e também choraram todas as crianças da cidade pela falta que a máquina nos fazia.
Uma semana depois ela foi encontrada em uma cabana no meio da floresta, o abrigo do Jacinto Sucateiro, como era conhecido o homem do saco. Pelo que pude entender, o mal-feitor queria desmontar a máquina para vender as peças, mas depois de ter começado o serviço, resolveu experimentá-la para saber o que ela fazia.
Imagino que ele também deve ter ficado fascinado com a experiência. De tão embasbacado com o efeito sobre sua mente e corpo, nem deve ter percebido a fumaça saindo do motor e o ruído nas engrenagens. Ele devia estar se sentindo livre como um pássaro voando, ou preso no gostoso abraço de sua mãezinha quando o fogo tomou conta da engenhoca e se espalhou pela cabana, e não se deu conta do cheiro de churrasco de si mesmo que exalava na atmosfera.
Quando o fogo foi apagado pelos bombeiros, já não restava muito o que salvar. Entre o aço distorcido e a borracha derretida dos restos da máquina, foi encontrado um corpo carbonizado e fumegante, e quem o viu podia jurar que aquela múmia de carvão expressava um sorriso tranqüilo no que antes fora um rosto.
Depois de tudo isso, meu avô disse que não poderia construir outra máquina da alegria, pois algumas peças seriam impossíveis de se achar. O tempo foi passando e fui sentindo cada vez menos falta das sensações fantásticas que pude sentir dentro daquela grande caixa amarela, até me esquecer que um dia ela já existira. Mas hoje seria ótimo se eu pudesse entrar nela outra vez e, pelo menos por alguns curtos instantes, esquecesse que aquele meu mundo, naquela cidadezinha, não existe mais, assim como não está mais aqui meu velho avô, que me alegrava tanto com os brinquedos que criava e com os abraços que me dava.